terça-feira, 2 de março de 2010

Crônica - Vou me deitar - Drummond

Achei este texto na internet e nem tenho certeza se é do Drummond mesmo ou se o título é este, mas vale a pena a leitura.

Vou me deitar...

Carlos Drummond de Andrade

A Mãe e o Pai estavam assistindo televisão, quando a Mãe disse:
- 'Estou cansada e já é tarde, vou me deitar'.
Foi à cozinha fazer uns sanduíches para o lanche o dia seguinte na escola, passou uma água nas taças das pipocas, tirou carne do freezer para o jantar do dia seguinte, confirmou se as caixas dos cereais não estavam vazias, encheu o açucareiro, pôs tigelas e talheres na mesa e preparou a cafeteira do café para estar pronta para ligar no dia seguinte.
Pôs ainda umas roupas na máquina de lavar, passou uma camisa a ferro e pregou um botão que estava caindo. Guardou umas peças do jogo que ficaram em cima da mesa e pôs a agenda do telefone no lugar. Regou as plantas, despejou o lixo e pendurou uma toalha para secar.
Bocejou, espreguiçou-se, e foi para o quarto. Parou ainda no escritório escreveu uma nota para o professor do filho, pôs num envelope junto com o dinheiro para pagamento de uma visita de estudo e apanhou um caderno que estava caído debaixo da cadeira.
Assinou um cartão de aniversário para uma amiga, selou o envelope e fez uma pequena lista para o supermercado. Colocou ambos perto da carteira.
Nessa altura o Pai disse lá da sala:
- 'Pensei que você tinha ido se deitar'.
- 'Estou a caminho', respondeu ela.
Pôs água na tigela do cão e chamou o gato para dentro de casa. Certificou-se de que as portas estavam fechadas. Espreitou para o quarto de cada um dos filhos, apagou a luz do corredor, pendurou uma camisa, atirou umas meias para o cesto da roupa suja e conversou um bocadinho com o mais velho que ainda estava estudando.
Já no quarto, acertou o despertador, preparou a roupa para o dia seguinte e arrumou os sapatos.
Depois lavou o rosto, passou creme, escovou os dentes e acertou uma unha quebrada.
A essa altura, o pai desligou a televisão e disse:
- ' Vou me deitar'
E foi... sem mais nada.